"Tiraram o Salazar, deixaram as cruzes"

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"Temos, temos. Temos crucifixos, sim. Mas diga-me lá, porque é que estão a querer tirá-los, se sempre cá estiveram? Não me sabe dizer?" Do outro lado da linha, a auxiliar de acção educativa da Escola Básica n.º 1 de Lisboa, a mais antiga da capital, é um desvelo de candura. Em pessoa também "Acho mal isto", repete. "Sou católica, sabe?"

Aos sessenta anos, mais coisa menos coisa, a dona Maria, que aqui estudou, aqui pôs os filhos a estudar e aqui trabalhou nos últimos 19 anos, é a memória viva de uma escola onde se entra como num museu, o frontispício de pedra a avisar dos séculos (1875), a bandeira nacional esfiapada dentro de uma vitrina, a frase emoldurada de Oliveira Salazar a jurar, em letras esfumadas no papel amarelado, grandezas de patriotismo e orgulho ao país pequeno e só. E os crucifixos, claro madeira escura e metal no corpo do redentor supliciado, um em cada sala mais uns tantos amontoados num armário envidraçado à altura do olhar das crianças cujo coro de recreio ecoa, falso como em gravação, nos móveis graves de antiquário, nos tectos altíssimos e no chão de mosaico branco e vinho.

Possível crer, assim - sem espreitar das janelas que dão para o pátio os meninos de todas as cores que atestam a multiculturalidade da zona (entre o Campo Santana e o Martim Moniz) -, que se saiu do século XXI da democracia, da alta velocidade e da banda larga para os idos de cinquenta do passado. Mesmo a dona Maria, de vigia na bata azul, se esforça por fazer o filme "Mesmo quando tiraram os retratos do Salazar e dos outros, há 30 anos, deixaram sempre os crucifixos."

interferência intolerável? Inútil talvez recitar à dona Maria a Constituição da República, que desde 1976 (quando andaram a tirar os tais retratos) consagra os princípios de separação entre Estado e confissões religiosas e de não confessionalidade da escola pública. Inútil falar da lei de liberdade religiosa, em vigor desde 2001, que volta a frisar que "o Estado não adopta qualquer religião" e diz que "ninguém pode (?) ser obrigado a professar uma crença religiosa, a praticar ou a assistir a actos de culto, a receber assistência religiosa ou propaganda em matéria religiosa".

Inútil ainda lembrar à dona Maria um parecer de 1999 do provedor de Justiça, então Menéres Pimentel (que hoje preside à Comissão de Liberdade Religiosa, criada pela lei do mesmo nome e a funcionar desde Fevereiro de 2004), em que este, a propósito da queixa do encarregado de educação de um aluno de uma escola básica de Lisboa, se insurge contra "a presença permanente de símbolos religiosos nas salas de aula das escolas públicas", por permitir que "a confissão ou confissões religiosas em causa utilizem para a divulgação das suas crenças os meios reunidos pelo Estado para o cumprimento das obrigações que lhe incumbem em matéria de ensino", consubstanciando"uma interferência da religião na esfera pública intolerável".

tolerância de sentido único? Mas há intolerabilidades e intolerabilidades. E, mesmo para quem, ao contrário da dona Maria, conhece - ou diz conhecer - as leis, interpretações para todos os gostos. Por exemplo para o do bispo Carlos Azevedo, porta-voz da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), para quem retirar do quadro legal português a asserção de que os símbolos religiosos não têm lugar na escola pública é isso mesmo, "uma interpretação" que deixa "perplexas" as "comunidades cristãs". E que, de acordo com as declarações publicadas do também bispo Jorge Ortiga, presidente da CEP, levará a Igreja Católica a "agir em conformidade". Há até quem assuma a retirada dos símbolos como uma declaração de guerra, uma cruzada mas ao contrário. Caso do cónego João Seabra, conotado com a ala mais conservadora da hierarquia "Trata-se de uma primeira tentativa de cancelar a presença social do cristianismo que só se pode fazer contra os direitos essenciais da pessoa humana."

Com argumentos opostos mas no mesmo sentido pronuncia-se o constitucionalista católico Jorge Miranda, que advoga uma tolerância de sentido único, aconselhando às minorias, religiosas e laicas, "uma atitude aberta e não rígida, que não escamoteie a realidade histórica e cultural" e as leve a "aceitar a presença dos símbolos". Uma posição que fundamenta ao considerar que "a lei não pode ser só vista como o texto escrito" mas, sobretudo, invocando "a delicadeza da questão" e o "frágil equilíbrio em causa".

Certo é que, de acordo com a comissão executiva provisória do agrupamento de estabelecimentos de ensino lisboetas a que pertence a Escola Básica n.º 1, "nunca houve qualquer queixa de um encarregado de educação quanto à presença daqueles símbolos". E, sublinha Belmira Abrantes, uma das três professoras que compõem a comissão, "trata-se, como viram, de uma escola multiétnica, onde existem quase de certeza crianças de religião não católica".

Sediada na Escola Preparatória e Secundária Nuno Gonçalves, na Penha de França, a comissão conta, na sua sala, com um crucifixo. "Pois é", diz outra das professoras da direcção do agrupamento, Assunção Costa. "A gente já nem os vê..." Para as duas, trata-se de algo que "já ali estava, encaramo-lo como uma obra de arte... Não nos incomoda. E, para dizer a verdade, nunca reflectimos sobre isso."

Agora que a polémica se instalou, no entanto, Belmira não vê necessidade de "retirar radicalmente os símbolos, até porque a vida das escolas vai obrigar a que as coisas vão evoluindo". Quanto a Assunção, acha que "se deve ouvir todas as partes". A saber "Por exemplo, a Conferência Episcopal queixa-se de que não a consultaram."

Quem quiser que se queixe.Também a Comissão de Liberdade Religiosa, esta com algum motivo, já que é órgão consultivo do Governo e do Parlamento para as matérias da liberdade religiosa e com o dever de fiscalizar a aplicação da lei, se lamentou ao DN, pela voz de vários dos seus membros, de não ter sido objecto de qualquer consulta por parte do Ministério da Educação nesta matéria.

Certo é que a comissão tem autonomia para se pronunciar, na sua área, sobre o que bem entenda - e nunca entendeu fazê-lo sobre um tema que já criou polémicas em quase toda a Europa, da Itália à Alemanha, com casos judiciais, intervenções governamentais e recomendações papais. Certo também é que está muito a tempo de o fazer, já que, como a ministra esclareceu há dois dias na SIC Notícias, a retirada de crucifixos de algumas escolas do País, ocorrida por ordem das direcções regionais de educação, se deveu a "casos pontuais" em que "houve queixas de encarregados de educação", e não a uma orientação geral do ministério nesse sentido, que "não há" e, no entender de Maria de Lurdes Rodrigues, "não deve haver".

É que, mesmo afirmando "sem problemas" a laicidade do Estado, e invocando até a já citada recomendação do provedor, que reputa de "taxativa no sentido de que os símbolos religiosos devem ser retirados das escolas", a ministra conclui que "não seria sensato" agir em conformidade "porque é uma questão que divide e é preciso procurar equilíbrios".

O equilíbrio encontrado pelo ministério é então o de invocar a lei e o seu cumprimento apenas quando alguém, "sentindo os seus direitos violados", invoca a lei e o seu cumprimento. Um "cumprir da lei" que Luís Mateus, da Associação República e Laicidade, que em Abril confrontou a ministra através de uma exposição/denúncia e lançou a questão nos media, vê como peculiar. "Dizer que 'quem se sente incomodado que se queixe' é não só uma incompreensão do princípio da liberdade religiosa e da laicidade, que presumem que ninguém deve ser obrigado a expor as suas convicções religiosas ou a ausência delas, como um entendimento das leis que Jorge Sampaio caracterizou há algum tempo, quando disse que em Portugal são vistas como meras indicações."

Um entendimento que a ministra partilhará com a generalidade do espectro político - à excepção do PP, único a defender os símbolos nas escolas. O deputado do PSD Montalvão Machado, por exemplo, acha que "a lei pode não estar a ser formalmente cumprida, mas não se pode dizer de repente 'vamos alterar isto'". José Neto, do PCP, e Fernando Rosas, do BE, assumem mesmo "um certo receio" dos decisores políticos face às questões que se prendem com a Igreja Católica. "O partido ou governo que diga 'saiam os crucifixos' seria crucificado", assevera Neto.

A dona Maria, que não sabe de leis nem provedores, nem sequer de outras confissões, não vai tão longe. Mas não imagina uma situação em que tivesse de se confrontar com o símbolo de outro credo nas paredes da sua escola. "Não sei, não conheço... Mas se eu sou portuguesa porque haviam de vir aqui pôr outra religião?"

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